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Foto do escritorEduardo Regis

O Islã e o Vodou

Frater Vameri



No novo mundo talvez uma das religiosidades de matriz Africana que tenha contribuição do Islã mais evidente seja o Palo Monte Cubano. Entretanto, como sabemos, muitos Africanos trazidos na diáspora eram muçulmanos. Portanto, a influência Islâmica necessariamente vai além de somente uma expressão religiosa Americana. Nem sempre é simples, porém perceber a origem Islâmica de alguns elementos religiosos. No caso do Vodou Haitiano, com frequência esta é uma discussão pouco explorada. Neste breve artigo espero revelar que há sim a presença de influência Islâmica no Vodou, embora apenas de maneira introdutória. Para tal me basearei principalmente em dois trabalhos que citarei com frequência: o de Benson e o de Khan.


LeGrace Benson afirma que há evidências do Islã nos vèvè e em antigas bandeiras ritualísticas. Benson também nos conta de mambos e houngans utilizando a saudação “Salam Alechem” e fala do Lwa Senego que saúda as pessoas com a frase “As salaam aleikum”. Então, se seguirmos Benson, estaremos certos de que o Islã está presente no Vodou. A questão agora é desvendar como isso teria acontecido. É claro que esta tarefa é ousada e, portanto, apresentarei apenas pistas que apontam para essa resposta.


Benson continua a discussão revelando que os escravos muçulmanos levados ao Haiti provavelmente eram letrados, por conta da necessidade dos fiéis do Islã de lerem e escreverem o Alcorão (as grafias Alcorão e Corão são aceitas). Ainda mais, Benson nos conta que o uso de letras e de caracteres geométricos era aplicado em amuletos como os hatumere. Talvez então os desenhos dos vèvè possam encontrar também alguma ascendência nessa prática.


Aisha Khan nos dá uma perspectiva interessante sobre a relação entre Vodou e o Islã ao comentar que Boukman (um dos responsáveis pela cerimônia de Bwa Kayman em 1791, que disparou a revolução Haitiana) tinha conexão com o mundo Islâmico. A argumentação para essa conexão passa pelo fato de Boukman ter sido um Jamaicano que teria sido levado à ilha de São Domingos por um escravagista Inglês. Diz-se que seu nome “Boukman” seria a corrupção Francesa de “Book Man” – “Homem do Livro”, o que Khan rememora oportunamente. Duas interpretações seriam possíveis aqui: 1) ele teria sido um escravo letrado; 2) ele teria sido ligado a um livro em específico. Khan aponta para a segunda como sendo a mais provável e conta que Boukman provavelmente era identificado por sua relação estreita com o Alcorão. O Alcorão é especificamente citado, pois “Gente do Livro” era a maneira como os Africanos se referiam aos Muçulmanos, de acordo com Sylviane Diouf (citada por Khan). Além disso, Khan aponta que Makandal também teria sido Muçulmano, assim como Fatiman ou Fatima (a mambo que teria presidido Bwa Kayman junto de Boukman).


Citando Diouf novamente, Khan afirma que esta acredita que Makandal e Boukman eram, de fato, marabouts – ou líderes religiosos do Islã. Para dar suporte a essa ideia, a autora cita Laurent Dubois que recuperou escritos de 1779 que apresentam Makandal como uma representação de Maomé. Ainda, os marabouts eram famosos pela sua habilidade com gris-gris, tipos de amuletos típicos do Caribe. Curiosamente, estes amuletos são geralmente feitos como bolsas de couro ou outros materiais com escritos Árabes dentro. Lembram vagamente os paquets do Vodou, embora a origem dos paquets seja atribuída aos niksi wambi do Congo. Nesta linha, Khan cita Dubois novamente que conta que um contemporâneo de Boukman registrou que os pelos do porco sacrificado em Bwa Kayman foram utilizados na fabricação de amuletos.


Khan destaca oportunamente que é preciso considerar que as práticas desses Africanos Muçulmanos como Makandal e Boukman eram sincréticas. Isto não ocorria, como a autora ensina apenas por conta do ambiente Caribenho, pois o próprio Islã Africano já era sincrético. Coisa que já acontecia com o Cristianismo do Congo como vemos nos trabalhos de Jhon Thornton.


A própria Khan comenta que a vida nas colônias tornaria impossível a um Muçulmano se manter dentro da ortodoxia da religião. Este poderia ser um dos motivos pelos quais a identidade Islâmica de muitas figuras centrais na formação do Vodou se mantenha em segundo plano. É claro que essa quebra de ortodoxia também poderia responder por uma plasticidade maior das práticas, levando a saberes e fazeres inovadores que mais tarde fariam parte dos elementos estruturantes do que conhecemos como Vodou.


Uma exploração adequada das relações entre o mundo Islâmico e o Vodou Haitiano é material para mais do que este artigo pode oferecer. Entretanto, a discussão aqui levantada é relevante, pois, principalmente, aponta para o tópico da diversidade de origens e de manifestações do Vodou Haitiano. Ao investigarmos as diferentes influências que compõe essa espiritualidade e ao pensarmos na miríade de espíritos e praticantes, fica claro que o fazer Vodou só pode ser mesmo belamente variado. Assim, ao notarmos como essa integração se transformou em algo tão fascinante, também aumentamos (acredito) nosso respeito pelas mais variadas maneiras de se conectar com o invisível.

Referências

Benson, LeGrace. “‘Qismat’ of the Names of Allah in Haitian Vodou.” Journal of Haitian Studies, vol. 8, no. 2, 2002, pp. 160–164. JSTOR, www.jstor.org/stable/41715141. Accessed 13 Aug. 2020


Khan, A. “Islam, Vodou, and the making of the Afro-Atlantic”. New West Indian Guide. Vol. 86. No. 1-2 (2019). Pp. 28-54.

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